23.2.12

Manicômio judiciário de franco da rocha: clínica e ética

Manicômio judiciário de franco da rocha: clínica e ética*

Loucos no manicômio. Franscisco de Goya y Lucientes. Museu do Monastério de Guadalupe


Margarida Calligaris Mamede

Doutora e mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo
Psicóloga licenciada do Manicômio Judiciário de Franco da Rocha-SP Professora/supervisora da Universidade Cruzeiro do Sul – SP.
Psicoterapeuta
Resumo: Este artigo narra a experiência vivida durante os últimos quinze anos junto às pacientes internadas na Colônia Feminina do antigo Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, no Estado de São Paulo. A proposta de atendimento terapêutico utilizando cartas e fotografia nasceu dos inúmeros pedidos feitos pelas próprias pacientes e da necessidade de prover, minimamente, um cuidado humano para aquelas pessoas acometidas por transtornos mentais graves. Os referenciais teóricos utilizados foram à psicanálise de Donald Woods Winnicott e a filosofia de Lévinas, além de Walter Benjamin, Gilberto Safra e de fotógrafos brasileiros.


Palavras Chave: ética, clínica, cartas, fotografias, doença mental.

MANICOMIO JUDICIÁRIO DE FRANCO DA ROCHA:
CLÍNICA Y ÉTICA


Resumen: Este artículo narra la experiência vivida durante los últimos quince años junto a las pacientes internadas em la Colônia Femenina del antiguo Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, em la Província de São Paulo. La propuesta de atendimiento terapêutico utilizando cartas y fotografias nació de los inúmeros pedidos hechos por lãs propias pacientes y de la necesidad de prover, minimamente, um cuidado humano para aquellas personas acometidas por transtornos mentales graves. Los referenciales teóricos utilizados fueron la psicoanálisis de Donald Woods Winnicott y la filosofia de Lévinas, además de Walter Benjamin, Gilberto Safra y de los fotógrafos brasileños.

Palabras Clave: Ética; clínica; cartas; fotografias; enfermedad mental




Introdução
As reflexões apresentadas neste trabalho são resultados de indagações e angústias decorrentes de minhas tentativas de oferecer um acolhimento mínimo para o sofrimento das pacientes internadas na Colônia Feminina do antigo Manicômio Judiciário do Estado de São Paulo, atual Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima, ligado à Secretaria da Administração Penitenciária, situado na cidade de Franco da Rocha, na grande São Paulo.
Há 15 anos trabalhando nesse Hospital, tenho me deparado com histórias de vidas marcadas por sofrimentos que começaram, na maioria das vezes, quando estas mulheres foram abandonadas por seus pais ainda bebês ou crianças pequenas. Em muitos casos, esse abandono precoce levou-as, quando adultas, a episódios de violência subjetiva e concreta, direcionadas a si mesmas ou a outros.
Justamente por me ver diante de dores e de situações institucionais que pareciam perpetuar os mais diversos modos de violência, passei oito desses 15 anos estudando no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, tentando encontrar uma maneira de acolher a dor daquelas mulheres. Nele realizei mestrado e doutorado, ambos com orientação de Gilberto Safra. Este artigo, traz as reflexões essenciais de minha tese de doutorado defendidas no ano de 2002. Tais reflexões e a proposta do trabalho terapêutico que surgiu a partir delas não têm a intenção de propor uma nova técnica e se contentam em ser apenas uma proposta clínica, um procedimento que talvez possa ser utilizado por aqueles que nele encontrar sentido e rigor, além de uma possibilidade para aprofundar o pensamento clínico.

Faz-se necessário registrar que uma de minhas preocupações, tanto nos anos de doutorado quanto ao preparar o livro, foi à divulgação das fotografias e das cartas que o ilustra. Num primeiro momento, por questões éticas, inclinei-me a não as utilizar, evitando a exposição das pacientes. No entanto, as pacientes sempre me solicitavam que mostrasse “aos outros do mundo” suas fotografias e cartas, sobretudo quando expliquei a elas que realizaria uma tese e, posteriormente, publicaria um livro que discutia o tratamento que realizava com elas.

Diante dessa solicitação, refletida com mais detalhes no livro, e da proposta terapêutica que as utiliza, decidi utilizar algumas imagens que incluem as fotos e registro das cartas, acreditando que elas possam expressar com mais legitimidade tanto as propostas de meu trabalho como a repercussão dessas imagens na vida das pacientes.
Com o objetivo de preservar a ética sobre a qual se deve pautar o trabalho científico com seres humanos – através, neste caso, do respeito às pacientes com sigilo e não exposição – e levando em conta o pedido delas, elaborei um documento com as considerações feitas pelo CONEP – Conselho Nacional de Ética em Pesquisa – do Ministério da Saúde e com a Resolução do Conselho Federal de Psicologia (no. 016/2000). O Juiz responsável pela Corregedoria dos Presídios do Estado de São Paulo emitiu parecer sugerindo que as pacientes ou seus representantes legais emitissem as autorizações, que foram providenciadas. Cópia do livro também foi enviada ao próprio CONEP para análise que, através de sua Secretaria Executiva, em ofício de julho de 2005, relatou dar pareceres apenas para pesquisas em andamento e não para as já concluídas.

As pacientes

A maior parte das pacientes pertence às classes sociais menos favorecidas, trazendo em seus históricos marcas fortes da marginalização e exclusão, muito em função do abandono precocemente vivido. Talvez por isso, uma das marcas da minha rotina é ser requisitada por elas de modo a lhes providenciar objetos e cuidados aparentemente simples e desprovidos de um conteúdo subjetivo maior. Outra marca, que caminha paralelamente a estas demandas, é a constatação do aumento de pacientes jovens que, tão cedo, acabam adoecendo física e psiquicamente, seja nas penitenciárias, onde cumprem suas sentenças pelos crimes cometidos, seja quando em liberdade. A loucura parece aumentar dia após dia. A solidão gerada pelo abandono parece ter se tornado rotina na vida de grande parte das pacientes ou, quem sabe, esta não chegou sequer a ser uma vida, se pensarmos nos movimentos necessários que possam colocar um ser humano em marcha , como preconizava Donald Woods Winnicott ( 1896-1971 ).

Diante de tantos e de insistentes pedidos, muitas vezes me sinto impulsionada a abandonar tudo o que tenho a fazer quanto à rotina (atendimentos agendados, afazeres burocráticos, visitação às pacientes nas solitárias e reuniões) para ouvir e escrever, numa lista, esses pedidos, ponderando posteriormente quais deles estão ao meu alcance de resolver. Outras tantas vezes sinto-me exausta, tamanho o montante de solicitações feitas ao mesmo tempo.

Quando os pedidos partem das pacientes mais jovens, muitas com rostos nos quais impera ainda uma expressão infantil (com a pele lisa, sem muitas cicatrizes; pele de rosto de adolescente, sem rugas), vejo-me profundamente tocada, condoída, por entender o grande paradoxo que esses rostos trazem: tão jovens, mas inversamente tão deteriorados, com um futuro aparentemente sombrio, como se já fossem velhos porque não há esperança e parece não haver rastro ou lampejo de vida. Em muitas delas, apesar de o rosto ter aparência pueril, o corpo reflete o que está estraçalhado: por exemplo, o comprometimento neurológico em decorrência do uso do crack já deixou seqüelas irreversíveis e qualquer derradeiro sinal de vida parece frágil, incipiente.

Quando o pedido vem das mais velhas, percebo que a voz é densa, baixa; muitas vezes preciso olhar mais para o rosto delas do que tentar ouvir o que dizem e, com isso, as marcas no rosto e no corpo acabam tomando imediatamente minha atenção (as mais velhas, ao contrário das jovens, são mulheres geralmente sem dentes, com cicatrizes de cortes espalhadas pelo rosto e pelo corpo e com problemas clínicos que raramente são considerados pela equipe médica).

Diante destas circunstâncias, quando sentia a necessidade de promover algum espaço para dar-lhes acolhimento, de maneira que o sofrimento e a dor delas pudessem ser comunicados e compartilhados, vi-me, em alguns momentos, sem esperança de que algo pudesse fazer sentido no meu trabalho. A desesperança aumentava quando eu constatava que nada, ou pouco, adiantava promover condições mínimas para o resgate da saúde psíquica, uma vez que o ambiente se mostrava tão adverso. Refiro-me aqui tanto ao ambiente do Manicômio quanto ao ambiente de onde vieram: a rua, as instituições reformatórias, a família aparentemente desorganizada e incapaz de oferecer qualquer tipo de suporte. Portanto, estamos diante de ambientes que se caracterizam pela exclusão, pelo abandono emocional e concreto, e pela violência não só física, mas principalmente subjetiva .
Fui constatando ao longo do tempo que a constituição da subjetividade dessas pessoas é marcada por buracos no self (Winnicott, 1988) e por falhas importantes de desenvolvimento psíquico que comprometem o amadurecimento psíquico, de tal forma que eu tinha a impressão que nada mais me restava fazer. Abandonadas, essas pacientes sofrem humilhações e a posição delas diante da vida é tentar não serem devoradas. Reagem, desta forma, enlouquecendo, tornando-se violentas, ou apáticas, delinqüindo ou morrendo mergulhadas nas drogas.
Com tanta exclusão, dor e violência, perguntava-me: o que poderá ajudar essas pacientes a se sentirem minimamente vivas? Qual é o lugar delas? Onde elas poderão estar além da rua, ou da prisão, ou do Manicômio? Será que um dia existirá um lugar melhor para elas? Passei, então, a observar o que elas traziam de concreto que me ajudasse a ajudá-las; as cartas que me escreviam e as fotografias delas próprias despontaram como possibilidades.


As pacientes, as cartas e as fotografias

A história com as fotografias surgiu ao acaso, quando passei a levar minha câmera para registrar passeios curtos que fazíamos com elas, nos arredores da Colônia. Cada vez que isso acontecia, elas cobravam muito de mim para que eu levasse novamente a máquina fotográfica. Dada à insistência, passei a levá-la despretensiosamente, sem me dar conta da força que a fotografia adquiria.

Para fotografá-las foi necessária uma autorização judicial, pois registrar imagens é proibido dentro da Instituição. Aliás, este é um fato digno de atenção: não somente há poucos registros escritos a respeito da vida e da história da Instituição, como as anotações em prontuários são escassas. Assim, quando se fala em fotografias ou outro tipo de registro, funcionários imediatamente temem e tentam coibir, livrando-se e desfazendo-se de qualquer meio que fiquem guardados, seja em um lugar concreto, como armários e paredes da Instituição, sejam na memória daqueles que direta ou indiretamente participam da vida ali dentro da Instituição. Em contrapartida, como poderão ser acompanhadas neste trabalho, as pacientes solicitava insistentemente que se registrassem seus rostos, suas vidas, nas imagens fotográficas. Não tenho como não dizer isto, já que foi um dos pedidos que soou mais forte para mim, justamente por ser interminável e insistente. Se eu levava a câmera fotográfica diariamente, ou esporadicamente, isto não fazia a menor diferença, pois os pedidos eram dirigidos com a mesma intensidade e teor que foram feitos nas primeiras vezes que se viram diante dela. Quando eu não levava a câmera, continuava fazendo retratos silenciosos dentro de mim, conforme andava pelo pátio e olhava para aqueles semblantes.

Percebi que, à medida que as pacientes viram as primeiras imagens, ficaram tomadas por sentimentos intensos e antagônicos. Queriam que eu tirasse muitas fotos, eram insistentes nisso, mas, quando se viam, surpreendiam-se e ficavam decepcionadas.
Algumas chegavam a negar sua imagem e rasgar suas fotos, porque não se reconheciam mais, mas logo voltavam a pedir mais e mais. Outras, em movimento oposto, quase nem olhavam, mas permaneciam horas com a fotografia nas mãos, firmes, como se estivessem segurando a si mesmas – para estas, a foto parecia ter um efeito organizador. Ao perceber que este fato se repetia, decidi levar adiante o projeto de fotografá-las.

Em um primeiro momento também fiquei surpresa com este tipo de reação e assustei-me com a força da negação delas diante do que viam, iguais à força da insistência para fotografá-las. Eu não poderia imaginar, ou ver concretizada, essa negação de uma forma tão explícita. Ficava paralisada, sem saber o que fazer, tentando mostrar-lhes que eram elas nas fotos. Tive de lidar, inclusive, com uma avalanche de sentimentos intensos e terríveis, como o ódio, por exemplo, pois quem mostrava e lhes entregava as fotos era eu.
E, assim, elas me rechaçavam também, pois sentiam que eu tinha em minhas mãos a imagem nua e crua delas, primeiramente sentida como repugnante, irreconhecível, com as quais elas não queriam se aproximar e se apropriar. Mas, contraditoriamente, elas voltavam resignadas, com o olhar trêmulo, pedindo-me outra imagem, outro retrato.
Existe um fato concreto que deve ser considerado e ter contribuído, por um lado, para este distanciamento da imagem de si mesmas e, por outro, para este agarrar-se à fotografia: era proibido usar espelhos no Manicômio, por se tratar de um objeto que representa perigo (é um objeto cortante) como instrumento de auto ou heteroagressão. Sendo assim, as pacientes passavam meses, até anos, sem terem a possibilidade de ver seus rostos refletidos em algum lugar. A internação traz mudanças inclusive no corpo delas; não apenas o sofrimento redimensiona suas expressões faciais, tornando-as mais envelhecidas e tristes, a medicação freqüente provoca excessivo ganho de peso. Grande parte perde a imagem corporal que havia formado um dia (se é que chegaram a formá-la) e não se reconhecem depois de algum tempo.

A voracidade com que pediam mais e mais fotos, apesar de detestarem algumas, assinalava que talvez estivessem, ainda que bastante distantes de si mesmas, fazendo um apelo para que eu as auxiliasse justamente neste reconhecimento, para que eu as ajudasse a encontrar o que estava tão distante, tão estranho, tão à margem delas mesmas: a imagem do verdadeiro eu, ou melhor, de um eu que não as assustasse tanto, que não lhes soasse tão estrangeiro, podendo ser sentido como próprio.
Resolvi aprofundar o trabalho com as fotografias por perceber a força destas na comunicação que as pacientes tentavam estabelecer comigo, bem como devido ao grande número de internas sob minha responsabilidade, o que impossibilitava um trabalho terapêutico tradicional.

Quanto ao uso das cartas, passei a prestar atenção nesta possibilidade de comunicação porque elas espontaneamente me escreviam bilhetes, me davam cartões de Natal, e me entregavam desenhos. Em um primeiro momento, comecei a retribuir os cartões de Natal, de Dia das Mães e outros de datas comemorativas. Percebi que elas ficavam notoriamente felizes quando eu as respondia por escrito. Nas conversas com meu orientador de doutorado, enfatizava muito a intensidade da gratidão e a quantidade de pedidos que vinha delas nas correspondências; com isso, fomos percebendo que talvez todo este material poderia abrir espaço para uma possível intervenção terapêutica.

Algumas dificuldades presentes na elaboração desse trabalho

A população internada no Manicômio sofre as conseqüências drásticas da falta de devoção humana, tanto nas primeiras esferas dos cuidados exigidos, exemplificadas como aquelas que logo cedo foram abandonadas, como nas esferas posteriores (quando o self já se encontra integrado e consegue se diferenciar da mãe). Um ciclo atroz de solidões e desamparos inchou e fez crescer nossa sociedade, retrato bruto da falta de dedicação e de identificação com as necessidades humanas. Desenganos somaram-se a descuidos, que se somaram às violências em suas várias facetas, culminando num estado perpetuado de pessoas imaturas, cada vez mais incapazes de cuidar.

Enquanto Winnicott passou parte de sua vida tentando nos mostrar o que o ser humano necessita para sentir-se como tal, em meu trabalho me defrontava, a todo instante, com a falta das condições descritas por ele. Os “buracos” que fui constatando nas vítimas de intermináveis descuidos me aproximaram também de Lévinas, com sua filosofia voltada para a “sabedoria do amor”. Para este autor, a filosofia é a ética primeira, enquanto exercício da alteridade que se manifesta a partir do momento em que sou impelido ao outro, em que me responsabilizei pelo outro na sua alteridade e na sua subjetividade, não tentando reduzi-lo a nada, mas tentando recebê-lo. Para Lévinas, só a partir do momento em que olho para o rosto do outro e reconheço nele uma linguagem, posso acompanhá-lo na sua solidão, e ao ouvi-lo, a existência e a vivência do ser acontece.

A noção de responsabilidade pela dor do outro é extremamente complexa na obra de Lévinas, pois tem como base a idéia de transcendência. Para esse autor, o homem é transcendência e, por isso, não há nada de absoluto que o represente, que encerre uma concepção do que ele é ou não é. É justamente o fato de eu me implicar no seu cuidado, apesar de sua transcendência, que faz com que eu o reconheça como tal. Por isso, para Lévinas, essa implicação com o outro transcende até a própria morte e nela não se encerra. A vivência da responsabilidade parece permear todo o sentido em relação ao outro, outro que sempre me diz respeito.

Viver a responsabilidade permite, por sua vez, entender a noção de sensibilidade, que se traduz na possibilidade de responder pelo outro, o que não significa conhecer o outro, mas simplesmente atendê-lo como humano. Lévinas ressaltou o quanto à ânsia do homem em conhecer o outro, implica, justamente, uma limitação que afasta o homem da transcendência. O rosto, para esse autor, é fundante, porque lembra a transcendência. Sendo assim, relacionar-se humanamente é receber o outro, antes mesmo de pensá-lo ou de decidir sobre esse recebimento. Essa concepção associa-se ao pensamento de Winnicott, relativo à necessidade de devotar cuidados ao bebê, pois, sem cuidado e sem acolhimento, não há possibilidade de vida.

A maioria das fotografias expostas no livro são retratos. As pacientes, quando vinham para perto da máquina, olhavam para ela e para mim como se tivessem só o rosto. Era impressionante como o rosto e o olhar prevaleciam quando elas se aproximavam para serem fotografadas. Era como se elas me “intimassem” a ajudá-las a matar a dor, a fazer dela nossa inimiga, tentando substituí-la pela esperança com a vida.

Por isso foi tão difícil para mim escrever sobre o que eu via e vivia, já que o que me importava era reconhecer o que aqueles rostos suplicantes me diziam e para o que me chamavam. Assim, é possível que minha função tenha sido reconhecer esses rostos na dor, no sofrimento, no abandono e na violência. Lévinas (1984, p. 80) diz que o rosto do outro que me olha está sempre nu, que ele é pobre e a ele eu devo tudo.

Costa (2000, p. 119) afirma que, para Lévinas, a violência é “aprisionar todos os entes, diferentes entre si, numa generalização que os condiciona e os condena a ‘não poder deixar de ser’, a ‘não poder ser ‘outro e a ‘não poder ser diferente”. Minha tentativa foi justamente promover um ambiente no qual as pacientes pudessem ser alguém além dos nomes e classificações que lhes foram concedidos tratando-as como seres únicos e levando sempre em conta que seus sofrimentos eram profundos.

Sobre o ato fotográfico
Ainda que a fotografia tenha sido um instrumento fundamental neste trabalho, não me sinto autorizada, tampouco habilitada, enquanto psicóloga, a discorrer sobre ela de maneira apropriada. Passei a utilizá-la muito mais em função de ser sua admiradora e de perceber o impacto que ela provocava nas pacientes. Conforme fui constatando que as fotos eram importantes às pacientes para resgatar todo um universo de sentidos que jamais havia sido experimentado, busquei contribuições teóricas que, repito, não me tornaram, ainda assim, uma profunda conhecedora da história da fotografia. Apenas para situar o leitor nos caminhos que cruzei e nos quais me respaldei, apresento algumas informações sobre o tema.

Desde o seu surgimento, em 1839, a fotografia tem sido objeto de estudo no campo das artes, da filosofia, da história e da ciência. Naquela época, era chamada de daguerreótipo - por ter sido descoberta pelo francês Louis Jacques Daguerre - e despertava interesse por possibilitar imprimir imagens sem, no entanto, conseguir reproduzi-las. Para nós, brasileiros, é especialmente interessante a biografia de outro francês, Antonie Hercule Florence, que chegou ao Brasil em 1824 e aqui permaneceu até sua morte. Esse homem, um artista muito interessado em vários campos do conhecimento, considerado por muitos um gênio, em 1833, conseguiu obter impressões em série, utilizando-se do seu conhecimento em química. Kossoy (2002) relata em seu Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro que, como estávamos aquém das descobertas preconizadas pela Revolução Industrial na Europa, o anonimato das descobertas de Florence durou cerca de 140 anos, tirando o Brasil do cenário oficial da descoberta da fotografia (p. 144). Segundo Kossoy, atualmente há um consenso no meio acadêmico e científico atribuindo a descoberta da fotografia a diversos “pais”, entre eles Gaguerre, Fox Talbot, Nièpce, Bayard e Florence (p. 144).

Inicialmente utilizada com a finalidade de atender à burguesia crescente, a fotografia servia para enviar as imagens que atestavam a grandeza dos lugares, a genialidade das descobertas e a nobreza dos burgueses, que exaltavam seu uso através, sobretudo, dos retratos.

No campo da história da arte, uma discussão inicial permeou a sociedade no final do século XIX: deveria a fotografia ser considerada arte? Não seria ela uma pretensa maneira de imitar a pintura? No início do século XX, essas discussões parecem ter sido esquecidas e deu lugar a reflexões vindas de alguns filósofos, entre eles Walter Benjamin, sobre a contribuição da fotografia. Uma discussão sobre a aura na concepção desse autor seria pertinente para falarmos sobre o significado que ele conferiu à fotografia, mas nesse momento me abstenho de realizar essa discussão por necessitar de um parêntese deveras complexo aqui.

As reflexões sobre o uso da fotografia –como arte e meio de expressão, inclusive da subjetividade humana - ganharam corpo na Europa e nos Estados Unidos nas décadas de 1950 a 1980, quando Susan Sontag e Roland Barthes discorreram sobre sua importância. Entretanto, para este trabalho, respaldei-me mais nas leituras de autores brasileiros (fotógrafos, antropólogos e historiadores) que abordaram sobre a contribuição da fotografia para a preservação da memória, a educação do olhar e para a possibilidade de ela ser utilizada como narrativa de fatos do mundo e da vida.

Há uma tendência entre autores nacionais e estrangeiros em acreditar que a fotografia não apenas registra e marca a história, mas pode ser usada como instrumento de delação.

Neste trabalho, no que se refere à experiência que tenho vivido com as pacientes internadas no Manicômio Judiciário, em nenhum momento senti que as fotografias poderiam ser utilizadas com a finalidade de delatar. Para esse propósito, eu teria de ter realizado outro trabalho e não é essa minha intenção. Ao contrário, pautei-me na prerrogativa levantada por Benjamin, segundo a qual a fotografia educa. Educou meu olhar, tornando-o mais atento ao pedido que as pacientes dirigiam a mim. Educou-me, ainda, na medida em que em me fez silenciar diante do olhar suplicante e insistente delas; foi um silêncio fundamental para poder ouvir o que o olhar delas pedia e, a partir daí, permitir a comunicação que, por sua vez, abriu espaço para a esperança.

Outro ponto que acredito ser digno de registro nessa apresentação é o poder mágico que a fotografia exercia sobre aquelas pacientes revelando o nascimento de algo entre nós que eu ainda não conseguia nomear e explicar. Algo me fazia acreditar que as fotografias tornavam-se sagradas ao atestar a existência das pacientes. Andrade (2002) discute essa idéia: A sacralidade estaria no entendimento de serem muitos possíveis, de ser interdisciplinar e estar aberto para o entendimento do outro “(...) as fotografias mostram o que não somos capazes de ver”.

Nesse sentido, a fotografia proporcionou o resgate da esperança, a partir do momento que permitiu que as pacientes guardassem dentro delas a memória de uma relação sem violência que nasceu entre nós, permeada e mediada por fotos. E abriu a possibilidade, para mim, de vê-las com mais cuidado. Sobre o resgate da identidade proporcionado pela fotografia, Andrade, afirma:
“(...) Todas essas imagens nos levam a resgatar o prazer do instante, do momento presente e do ausente, daquilo que passou, mas permanece na memória. Olhamos para fotografias para resgatar o passado no presente...Existe uma magia quando imortalizamos as pessoas e o tempo nas fotos. Para as tribos urbanas, fotografias são como provas de sua existência, de sua identidade e história”.
“(...) As fotografias eram provas de continuidade e, ao mesmo tempo, memória de sua própria história...Recorremos às fotografias para fazer presente o que ou quem está ausente. Nossa identidade individual depende da memória – e a fotografia é uma atividade fundamental para o contorno dessa identidade, seja para a auto-afirmação, seja para o conhecimento.( ANDRADE: 2002, p. 49).”

Antes de pensar a fotografia como sinal de identidade para essas pacientes, é preciso entender que ela possibilitou o nascimento de um sentimento provavelmente inusitado na vida delas: o de estarem vivas em um contexto não mais fundado na violência e no abandono. Assim, a foto parece ter se constituído como presença na companhia de alguém. Novamente recorro a Andrade (2002), que citando Pollak (1989), diz: “(...) Através das imagens, podemos aproximar mais as lembranças e as sensações daquilo que vivemos e estamos vivendo”.(p.70)

As fotografias também me ajudaram a olhar para aquilo que era sutil e não aparecia de modo explícito, embora contundente subjetivamente. Tornou-se um dever reaprender a olhar para aquelas pacientes, permitindo apreender o que se passava entre nós, sobretudo a manifestação de busca por contato humano.

Com essas primeiras reflexões, fica aberta uma questão: a fotografia, no terreno da psicologia e psicanálise, pode tornar-se um instrumento de criação de novas possibilidades. Philippe Dubois, um grande estudioso da fotografia na França, afirma que é necessário que o fotógrafo faça mais do que fotografar; para ele, o fotógrafo deve biografar.
Espero que com essas informações preliminares e, posteriormente, com a leitura das outras reflexões, o leitor possa compreender que minha tentativa, ao usar a fotografia e o ato fotográfico com as pacientes, foi justamente esta: ajudá-las a estabelecer suas biografias.

Sobre as cartas

O uso de cartas como instrumento terapêutico para psicólogos e psicanalistas é ainda inusitado. É provável, no entanto, que profissionais dessas áreas utilizem esse recurso esporadicamente e não tenham discorrido cientificamente ou compartilhado suas experiências em literatura específica.

Neste trabalho, um texto foi fundamental: “Quando o carteiro não chegou” (1998), de Ana Maria Seraidarian Najjar, me foi apresentado quando eu começava o doutorado. Ele me inspirou e tornou-se uma das mais importantes referências para tudo que consegui elaborar sobre o uso das cartas, sempre refletindo sobre uma maneira de usá-las para ajudar terapeuticamente as pacientes. Najjar tem se aprofundado nos estudos sobre o uso terapêutico das cartas com crianças que sofreram abandono e, em breve, deverá publicar novos trabalhos sobre esse tema.

A teoria winnicottiana já me era familiar e nela respaldava meu trabalho há muito tempo, como afirmei anteriormente, mas foi nesse texto de Najjar que encontrei sustentação para acreditar que o trabalho com as cartas poderia tornar-se fonte de esperança e referência subjetiva para as pacientes, sendo um possível instrumento terapêutico.

Em 2004, iniciei um projeto piloto na Clínica-Escola da Universidade em que leciono, com o objetivo de analisar a possibilidade de as cartas ajudarem pessoas em profundo sofrimento psíquico (não internadas em hospitais psiquiátricos) que recebem tratamento psicológico, psiquiátrico e social nessa Clínica. Um artigo sobre esse projeto foi escrito (ainda não publicado), narrando à experiência e tecendo reflexões sobre a importância que as cartas podem ter para ajudar esses pacientes a resgatarem minimamente a comunicação com o mundo ao redor.

Apesar da ausência de estudos científicos na área da psicologia e psicanálise, há, na literatura brasileira dos últimos anos, um aumento significativo de livros que trazem cartas trocadas entre poetas, romancistas, juristas e filósofos. Parece estar havendo, sobretudo no campo das artes, um despertar para a importância que as cartas tiveram ou ainda têm na vida das pessoas e na comunicação humana, hoje tão depauperada e comprometida com o uso e avanço da tecnologia.

Em 2005, o fotógrafo Mário Rui Feliciani publicou um trabalho, fruto de uma exposição realizada em Brasília alguns anos antes, sobre caixas de cartas. Percorrendo principalmente a periferia da Grande São Paulo, ele tentou resgatar o sentido que as cartas poderiam ter na vida das pessoas, observando como, nas situações mais inusitadas, sempre houve a preocupação de deixar o espaço nas casas preservado para o recebimento das mesmas. Ele relata:
"Um acontecimento em Brasília foi especialmente marcante. Era a abertura da mostra, havia autoridades, televisão, e foi-me trazida uma senhora que não conseguia falar. Chorava. Quando perguntei o porquê, disse que as caixas a tinham comovido, que “minha filha está tão longe”. (FELICIANI: 2005, p.14)

Enquanto escrevia essa parte do livro, não pude deixar de pensar na grande coincidência que era ter nas mãos um livro de fotografias sobre caixas de correio e de cartas.

Dispensando, nesse momento, uma análise mais rigorosa sobre essa coincidência, acredito que elas (cartas e fotos) devem, realmente, contribuir para o cuidado com a subjetividade humana na sua mais profunda expressão. Parece que, cada vez mais, são objetos da nossa cultura que voltam depois de um tempo esquecidos a habitar, com força, o universo humano, no seu anseio para sair da solidão e da tristeza.

Para ilustrar essa breve apresentação sobre o uso das cartas e algumas coincidências entre elas e as fotografias, recorro à transcrição de uma carta de Elizabeth Barret, escrita para Mary Mussel Muitford em 1843, apresentada no livro de Susan Sontag, quando esta homenageia Walter Benjamin:

Desejo ter uma lembrança de todos os seres que me são caros no mundo. Não é apenas a semelhança que é preciosa, nesses casos – mas a associação e a sensação de proximidade implicada na coisa (...) o fato de a própria sombra da pessoa que está ali ter sido fixada para sempre! É a própria santificação dos retratos, eu creio – e não é de modo algum monstruoso da minha parte dizer, por mais que meus irmãos protestem de forma tão veemente, que eu preferiria ter um tal monumento de uma pessoa que amei afetuosamente a ter mais nobre obra de um artista jamais produzida. (SONTAG:,p.199)


Últimas considerações

O recorte do trabalho apresentado aqui teve como objetivo principal mostrar apenas como se faz necessário, na atualidade, não apenas educar nosso olhar dirigido ao sofrimento humano, mas também necessitamos buscar intervenções que nos ajudem a cuidar da dor alheia.

Infelizmente as condições gerais dos manicômios judiciários no Brasil, além de inóspitas e ineficientes, perpetuam um cenário de miserabilidade humana que não deveria existir. Tem sido difícil manter a crença nas instituições e nos órgãos competentes. Porém, dentro da nossa responsabilidade com o cuidado daquelas pessoas, não devemos nos paralisar diante do caos. É preciso seguir, quem sabe escrevendo cartas para o mundo e mostrando as fotografias tristes que retratam o abandono daquele lugar.
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*Publicado na Revista da Escola Superior Dom Helder Câmara -Veredas do Direito Vol. 3 - Nº 6 - jul. a dez. - 2006
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(org.): A Clínica e a Pesquisa no Final do Século: Winnicott. São Paulo: Lemos, pp. 171-174, 1997.
__________. Quando o carteiro não chegou. Revista Insight Psicoterapia, ano VIII, n.
89, pp. 24-27. São Paulo: Lemos Editorial, 1998.
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24.3.11

A substância do amor

A substância do amor

Como funciona a oxitocina, responsável por estabelecer
e reforçar os vínculos afetivos entre mãe e filho – e entre amigos,
namorados, amantes...


Naiara Magalhães
Album /Akg-Images /Latinstock
Madonna dei Palafrenieri, de Caravaggio (1571-1610)
Produzida no cérebro, a oxitocina é fundamental para fazer
com que a mulher se empenhe nos cuidados maternos
básicos e na proteção de seu filho contra os perigos.
Um simples olhar dela para seu rebento faz com que
seu cérebro seja inundado pela "molécula do amor"

Na definição do escritor francês Victor Hugo (1802-1885), ele é "pão maravilhoso que um deus divide e multiplica". Para James Joyce (1882-1941), um dos maiores gênios da literatura moderna, "tudo é incerto neste mundo hediondo, exceto ele". Sob a ótica da "dama do suspense" Agatha Christie (1890-1976), "diferente de qualquer outra coisa no mundo (...), ele ousa todas as coisas e extermina sem remorso tudo o que ficar em seu caminho". Na frase do para-choque de caminhão, ele é simplesmente imortal. Não importa o momento histórico, tampouco o prestígio literário de quem o decanta, o amor de mãe é sempre celebrado como o mais sublime dos sentimentos. Mas o que explica afeto tão singular? Com certeza, não se trata de uma invenção dos homens para subjugar o sexo feminino, como defendeu, em 1980, a escritora francesa Elisabeth Badinter no livro Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno. Para além de todos os fatores culturais que o refinaram, amor de mãe é uma questão bioquímica, movida a oxitocina. Produzida no cérebro, essa substância estava associada, até vinte anos atrás, a dois importantes processos fisiológicos envolvidos na maternidade – as contrações uterinas no momento do parto e a liberação de leite durante a amamentação.
Hoje, já se sabe que a oxitocina também atua no cérebro materno de modo a fortalecer os laços de carinho com o filho, os cuidados básicos e de proteção. Basta uma mulher olhar para seu rebento e o cérebro dela se inunda de oxitocina. Se houver contato físico entre os dois, os níveis da substância vão às alturas. Diz o neurocientista Renato Sabbatini, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): "Trata-se de uma questão evolutiva. O bebê depende muito da mãe para sobreviver, e a oxitocina é fundamental para fazer com que a mulher se dedique aos cuidados maternos". Com os avanços nos estudos da neuroquímica e o progresso dos exames de imagem, capazes de flagrar o cérebro em pleno funcionamento, os últimos estudos sobre o tema têm revelado que a importância da oxitocina vai muito além do berçário. As relações de amizade e do amor romântico também são alimentadas por oxitocina. Em mulheres e homens, ela é a substância do amor em todas as suas formas.
Produzida no hipotálamo, a molécula da oxitocina ativa as áreas relacionadas à afetividade, ajudando a estabelecer e a fortalecer os vínculos de afeição. Ela está, ainda, associada à produção de dopamina, o neurotransmissor responsável pelo controle do sistema de recompensa. Quanto maior a produção de oxitocina, mais intensa será a síntese de dopamina. Ou seja, maior será a vontade de repetir determinada experiência. No caso do sexo, imediatamente depois do orgasmo, os níveis de oxitocina sobem, em média, 40% – o que favorece a conexão emocional entre os parceiros. Se ele vai ligar ou não no dia seguinte, já é outra história. Um estudo publicado na revista científica americana Evolutionary Psychology, em 2007, mostrou que 66% das mulheres e 59% dos homens não se sentiam atraídos por seus parceiros até beijá-los. E o que os tornou atraentes aos olhos dos outros foi a oxitocina liberada durante o beijo. Em momentos como esse, quando aumenta a produção da substância, as áreas cerebrais associadas a sensações negativas, como estranhamento e medo, tendem a ficar mais apagadas. Ficam aguçadas, por sua vez, aquelas ligadas a empatia, cordialidade, confiança e generosidade.
Um dos estudos mais instigantes sobre o assunto foi coordenado pelo economista Ernst Fehr, da Universidade de Zurique. Duzentos homens foram divididos em dois grupos. Ao primeiro foi dada oxitocina, sob a forma de spray nasal. Ao segundo, placebo. A todos eles, Fehr propôs o "jogo da confiança". Por uma hora e meia, foram orientados a dividir ou doar dinheiro a seus pares – homens que eles não conheciam, com os quais nunca haviam trocado um olhar ou uma palavra. O grupo da oxitocina foi de longe o mais magnânimo. No fim da experiência, quase metade deles havia transferido todo (veja bem, todo) o dinheiro para um total desconhecido. É o que Fehr chamou de "confiança máxima". Em outro experimento, também usando spray de oxitocina, o psiquiatra René Hurlemann, da Universidade de Bonn, na Alemanha, e o neurocientista Keith Kendrick, do Instituto Babraham, na Inglaterra, testaram a empatia masculina diante de imagens como a de uma criança chorando ou a de uma menina abraçando um gato. O grupo de homens que inalou oxitocina demonstrou mais emoção ante as cenas que os "durões" do grupo placebo.
A oxitocina está em pelo menos duas frentes de investigação farmacológica bastante interessantes. A mais avançada delas é a da flibanserina, uma medicação originalmente desenvolvida como antidepressivo que tem se mostrado eficaz para o aumento da libido feminina. O remédio atua em sete neurotransmissores ligados ao desejo sexual, entre eles a oxitocina. A previsão é que o medicamento, já carimbado como o "Viagra feminino", chegue ao mercado até o fim do ano. Outros estudos examinam o uso da substância em crianças portadoras de autismo, transtorno que compromete a afetividade e as relações, cujas alternativas terapêuticas atuais são bem limitadas. Se comprovadas na prática as hipóteses dos especialistas, poderia até se falar, nesse caso, em cura pelo amor – pela química do amor.
Erich Lessing /Álbum /Latinstock
O Beijo, de Gustav Klimt (1862-1918)
Durante o beijo, ocorre a liberação de oxitocina, o que facilita a conexão
emocional entre os parceiros. No caso do sexo, imediatamente depois
do orgasmo, os níveis da substância sobem, em média, 40%
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12.3.11

Gravidez Após Morte Perinatal

 
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11.3.11

A criação da mãe moderna


A criação da mãe moderna
 
Revistas femininas da década de 1920 foram usadas na difusão de um novo papel da maternidade
© Maternidade - Eliseu Visconti, 1906

Esqueça o instinto materno, as dicas de mães, tias e avós. Na década de 1920, ser mãe de classe média exigia principalmente estar atenta e bem-informada sobre as orientações de como cuidar do filho estampadas nas páginas das revistas femininas, a partir da defesa e difusão de um discurso maternalista.

Por meio de matérias e artigos e de pu­blicidade dirigidos a mulheres, profissionais médicos reconheciam a presença de um instinto maternal inerente à natureza feminina, mas o consideravam insuficiente para a criação saudável dos filhos. Os chamados médicos higienistas se tornaram, assim, crescentemente presentes, ancorados nos pressupostos da higiene – e sua concepção de saúde como responsabilidade individual e alvo de processo educativo próprio. Esses profissionais eram informados pelos conhecimentos da eugenia e embebidos na atmosfera nacionalista que enxergava a viabilidade brasileira através de suas crianças. Apresentavam-se, portanto, como autoridades na promoção e na manutenção da saúde das crianças.

Para isso dedicaram-se, tanto em consultórios e hospitais quanto nas páginas de revistas e de livros, a uma campanha sistemática em prol do exercício de uma maternidade de base científica, orientada pelos princípios médicos da puericultura (especialidade da pediatria voltada para o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento das crianças). “Ao se apoiarem na supremacia da ciência e da razão sobre a emoção – e nesse plano ganhando sua legitimidade –, os médicos ofereciam um amplo e diversificado estoque de ensinamentos técnicos para guiar a conduta das mulheres na criação de seus filhos, em substituição aos ‘antigos’ dogmas religiosos ou palpites de curiosas, vizinhas ou avós, considerados perniciosos e ‘arcaicos’. Usar e fazer ciência: este seria o novo papel social da mãe moderna”, explica a médica Maria Martha de Luna Freire, formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutora em história das ciências e da saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e professora do Instituto de Saúde da Comunidade da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Maria Martha é autora da tese Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista em revistas femininas (Rio de Janeiro e São Paulo, década de 1920), que acaba de sair em livro com o título Mulheres, mães e médicos – Discurso maternalista no Brasil (264 páginas, R$ 35), pela Editora FGV. Em seu estudo, ela se debruçou sobre duas publicações importantes da década de 1920: Vida Doméstica (1920-1963) e Revista Feminina (1914-1936). Os artigos assinados por médicos, explica, habitualmente recebiam títulos que reforçavam essa identidade, como “Palestra médica”, “Conselho médico”, “Puericultura”, “Medicina doméstica” ou “Medicina do lar”, e versavam sobre todo o amplo universo infantil: da roupa ao sono, da dentição à alimentação. “Práticas corriqueiras como o banho ou as brincadeiras infantis adquiriam a dimensão de rituais higiênicos, ocupando muitas páginas das revistas com explicações pormenorizadas dos procedimentos”, diz. Nesse contexto, novos “objetos de saúde” eram apresentados e seu uso estimulado como prerrogativa da mãe moderna, como o termômetro doméstico e a balança.
© Reprodução do livro Caricaturistas Brasileiros, Pedro Corrêa do Lago
O psiquismo da criança, desse modo, “passou a merecer cuidados especiais, por exemplo, com sugestões de estratégias para controlar o medo e a teimosia e o estímulo a leituras ‘sadias’”. Já os costumes associados à herança colonial, como o de embalar as crianças, eram fortemente condenados com base nos preceitos científicos. Segundo a pesquisadora, a alimentação infantil foi o campo mais explorado pelas matérias das revistas consultadas, principalmente no que se referia à defesa da amamentação – lado a lado com a prescrição de substitutos ao leite materno. “Ao transformar a alimentação em nutrição, e a cozinha em laboratório, essas matérias alçavam as mulheres ao status de ‘nutricionistas da família’, valorizando, de um lado, a função maternal, e, de outro, facilitando o acesso à profissionalização feminina no campo da nutrição.”
Mãe de quatro filhos, Maria Martha conta que vivenciou as dores e alegrias de gestar, parir e cuidar de crianças. Como médica, dedicou muitos anos de sua atividade profissional à puericultura. “Transitei, portanto, na dupla dimensão de agente e receptora das práticas de puericultura.” Nesse meio tempo, ela acumulou reflexões e questionamentos quanto às origens, aspectos ideológicos e limites da puericultura como campo de prática médica. A pesquisa para o doutorado a levou a concluir que a maternidade científica constituiu uma das dimensões do discurso maternalista, ao articular tanto os princípios científicos da puericultura − como principal ferramenta de ação médica − quanto os argumentos produzidos pelos movimentos feministas. “O discurso da maternidade científica, apesar de enunciado pelos médicos, não se reduziu, portanto, à autoridade destes, mas emergiu da confluência de seus interesses comuns com as mulheres − coprotagonistas da ação.”

No momento histórico em que a construção da nacionalidade adquiria papel central e a função maternal consolidava-se como preocupação de ordem pública, prossegue Maria Martha, a valorização da maternidade − ganhando novo significado como a valorização da própria nação brasileira − adquiriu maior força argumentativa e forneceu renovada justificativa tanto para o discurso médico quanto para o feminista. “Ao tornar as mulheres − na qualidade de mães − responsáveis pela formação dos futuros cidadãos brasileiros, tal concepção de maternidade lhe agregaria o status de função social, elevando também o prestígio dos médicos dedicados à higiene infantil. Assim, se esses profissionais enxergaram na valorização da maternidade um caminho para obterem reconhecimento e legitimação profissional, para as mulheres tal perspectiva representava uma maneira de extrapolar o espaço doméstico e melhorar sua posição social.”
© Reprodução do livro Caricaturistas Brasileiros, Pedro Corrêa do Lago
Articulistas - A qualificação das revistas femininas como espaço social de construção da aliança negociada entre mulheres e médicos se mostrou acertada na opinião da pesquisadora. “Concluí que a partir da dimensão compartilhada de modernidade as revistas conformaram o ambiente de circulação cultural adequado para a difusão do ideário da maternidade científica.” O crescente quantitativo de matérias que versavam sobre a maneira científica de cuidar das crianças e a fidelidade das assinantes confirmavam o interesse das leitoras no assunto. “As manifestações na seção de correspondência da Revista Feminina enalteciam a qualidade do periódico, noticiavam eventos feministas ou acontecimentos sociais e solicitavam orientação sobre questões de ordem variada − de moda a receitas culinárias.” Já a coluna do Dr. Wittrock, em Vida Doméstica, recebia perguntas mais específicas sobre os cuidados com as crianças, o que a transformava em verdadeiro “consultório médico”.
Da mesma maneira, a progressiva substituição dos anúncios publicitários relativos ao campo dos insumos agrícolas e da zootecnia por reclames do campo da alimentação infantil − particularmente mais explícito em Vida Doméstica − representou outro sinal da penetração do discurso médico maternalista. “A análise do perfil dos articulistas forneceu outro indicativo da ade­quação das revistas femininas. Entre os colaboradores de Vida Doméstica e Revista Feminina, encontrei representantes da elite intelectual e médica da época, como Aprygio Gonzaga, Osorio Lopes, Antonio Wittrock, J. P. Fontenelle e Octavio Gonzaga.” Muitos desses autores ocupavam cargos de direção ou funções prestigiadas em instituições públicas, como o doutor Fontenelle − inspetor sanitário do Departamento de Saúde Pública e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Higiene −, o que confirmava ainda a capilaridade do movimento sanitarista brasileiro, como estratégia essencial do projeto reformista.

Da mesma forma, Maria Martha localizou entre os articulistas várias escritoras renomadas, como Ana de Castro Osorio, Chrysanthème, Condessa de Pardo Bazan e Maria de Eça − militantes de movimentos feministas e colaboradoras de periódicos em vários países −, o que reforçou o pressuposto da associação entre os ideários higienista, maternalista e feminista. “A presença simultânea de assinaturas tão distintas demonstra que o discurso maternalista expresso nas revistas femininas não se originava exclusivamente da comunidade médica, mas espelhava a convergência de interesses por parte de médicos e mulheres na construção do novo papel feminino de mãe.
Os dois primeiros anos da pesquisa de Maria Martha foram dedicados à reflexão teórica. A análise das fontes durou cerca de um ano, seguida de mais um ano para a redação final da tese. “Inicialmente localizei todas as revistas femininas que circularam na década de 1920, e, após uma análise preliminar, selecionei Vida Doméstica e Revista Feminina como representativas desse gênero de periódico, o qual prevê um conjunto de atributos, no que se refere à forma e ao conteúdo, habitualmente associados ao universo feminino – basicamente a moda e a literatura.” Ela observa que o longo período de circulação – 43 anos, a primeira; e 22 anos, a segunda – atestava a sua boa recepção e autorizava que fossem tomadas por exemplares do gênero. Foram examinados todos os exemplares das revistas produzidos na década de 1920, num total de 243 números.

Urbano - Através dos artigos publicados nas revistas, foi possível para a médica-pesquisadora perceber que as mulheres das camadas alta e média dos principais centros urbanos participaram ativamente da construção e difusão da ideologia da maternidade científica. “Ao reafirmarem a vinculação da função maternal à sua natureza e a compatibilidade de tal atribuição com outros papéis femininos, muitas dessas mulheres, em particular aquelas vinculadas aos movimentos feministas, aproveitaram a concepção de maternidade – como dimensão exclusiva do gênero – para aumentar seu poder e facilitar a reivindicação de outros direitos.” Endossaram, portanto, a ideologia da maternidade científica, enxergando na aliança com os médicos − e adesão aos princípios científicos da puericultura − meios para transformar a maternidade no papel social feminino.

Para essas mulheres, conclui Maria Martha, o exercício da maternidade científica, ao representar acesso ao espaço socialmente reconhecido da ciência − até então de domínio quase exclusivamente masculino −, constituiu caminho potencial de inserção dessas no espaço público − via filantropia ou trabalho profissional. 

Fapesp
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10.3.11

A (DES)CONSTRUÇÃO DA MATERNIDADE

A (DES)CONSTRUÇÃO DA MATERNIDADE

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PINTO, Maria das Graças C. da S. M. G. – Uniplac/Unifra – profgra@terra.com.br
GT:Gênero, Sexualidade e Educação / n. 23


Introdução

A maternidade tem se constituído cada vez mais em uma prática social que precisa ser repensada. Afinal, muito além de uma possibilidade biológica da mulher, a maternidade está permeada por valores que são pertinentes aos momentos e necessidades de um dado
período histórico. Considero, em um âmbito mais amplo das relações sociais, que a maternidade não se constitui apenas em uma prática restrita a mulher - que é mãe – mas envolve também o grupo nos quais suas relações sociais estão sendo estabelecidas.
Neste sentido, a maternidade deverá ser pensada também por meio das construções sociais de gênero, já que é pela relação entre os sexos que damos significado aos fatos sociais. Sem dúvida, ao falar em maternidade, existe um recorte implícito que, de certa forma, demonstra uma visão filtrada pelos olhares dos sujeitos de uma classe social, uma etnia e um sexo, que convivem em uma cultura específica.
A proposta desse trabalho é fruto de uma pesquisa de campo, que objetivava compreender as representações que homens e mulheres tinham acerca da maternidade.
Assim, após ouvir cinco pessoas1, três mulheres e dois homens por meio de entrevista semiestruturada  e pela metodologia de História de Vida, foi possível perceber a dimensão cultural influenciando as concepções, desejos e culpas em relação à maternidade. Alguns critérios foram respeitados para a escolha dos sujeitos, tais como: que estes tivessem filho(s), que vivessem ou tivessem vivido em situação conjugal, mesmo que por algum tempo, com a mãe ou pai biológica(o) deste(s) filho(s), que não houvesse grau de parentesco entre os sujeitos.

1 Nomes fictícios dos sujeitos: Márcia, trinta e oito anos, casada, tem uma filha, com treze anos e um filho com oito anos. Guta, trinta e quatro anos, casada, tem um filho com oito anos e uma filha com três anos. Cristina, quarenta e cinco anos, casada com Cristiano, professor, quarenta e nove anos. Tem três filhas uma com dezessete anos, outra com quatorze anos e uma com doze anos. - Carlos, quarenta e três anos, teve um relacionamento com Carmem, com quem teve uma filha, com quinze anos. Casou-se com Adriana, com quem teve um filho, com nove anos. Joel, trinta e quatro anos, casado, tem uma filha, com dois anos. (Idades correspondentes ao momento da coleta de dados).

A proposta de ouvir homens é porque entendo existir uma interdependência entre estes olhares específicos, o que acaba por justificar o viver socialmente. Em outras palavras, não se vive socialmente sem que haja uma isenção de sentidos entre o individual e o coletivo, tampouco entre os sexos, classe social, etnia, enfim, pelas características que marcam determinada cultura.

A maternidade nas fronteiras de Gênero

O processo de construção subjetiva da maternidade se dá também pelo que homens vivenciam e até imaginam ser a maternidade. Mulheres e homens têm formas distintas de significar uma mesma prática e indubitavelmente o sexo, seja biológico ou social, assume um marco diferencial nessa subjetivação. Nesse sentido, a perspectiva de gênero2 serve como importante aporte epistemológico para compreender a dinâmica relacional destas práticas sociais. Como diz Scott “o gênero é então um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre as diversas formas de interação humana” (1990, p.16).
A proposta central de gênero está, então, no reconhecimento da existência de uma relação entre a construção social de mulheres e homens, demarcando, dessa forma, a distinção entre a ordem biológica e social, no que diz respeito a como são construídas as diferenças entre os sexos. Gênero segundo Joan Scott, constitui-se em uma categoria de análise onde o núcleo essencial de definição repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições. O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder (1990, p.14).

Opção pela maternidade: o que dizem as mulheres

2 A terminologia gênero pressupõe um percurso histórico relacionado à evolução do movimento feminista, bem como a própria enunciação das mulheres como sujeitos que construíram, e constroem a história. Para aprofundar o tema ver: Flax, (1991); Kofes (1993); Louro (1995).
Opção resulta em possibilidade de escolha. No que diz respeito à maternidade, nem sempre essa relação tem se mostrado tão fácil de ser percebida. Grande parte das vezes parece predominar um caráter de obrigatoriedade nessa “opção”.
Uma das primeiras indagações feitas aos sujeitos da pesquisa, dizia respeito a como ocorreu à opção pela maternidade. Segundo Cristina, essa decisão foi muito discutida, juntamente com seu marido, tendo surgido muitos momentos de “recuo”. Para Ela a “opção” por ter filhos a acompanhou desde muito cedo, inclusive com certo caráter de idealização. No caso de Márcia, esta relatou que ser mãe era um desejo desde a adolescência.
A opção pela maternidade demonstra estar menos relacionada com uma escolha do que propriamente com um fascínio, uma decorrência óbvia e natural da existência feminina.
Parece que outra possibilidade, como não ser mãe, não está tão fortemente inscrita, seja na infância, na adolescência ou na vida adulta. Dificilmente ouviremos alguém dizer: sempre quis não ser mãe.
Provavelmente um dos motivos para não se reconhecer o fato de que a maternidade deveria se configurar efetivamente em uma opção, esteja no peso social que recai sobre as mulheres que dizem não a essa prática. A observação de Jeanne Safer mostra isso: Muitas das mães que conheço as quais trabalham em tempo integral aplaudiram as mulheres que aparecem neste livro, e não lhes foi difícil demonstrar empatia com seu ponto de vista, ainda que elas mesmas tenham feito uma escolha diferente. Algumas chegaram até a confidenciar que não estavam seguras de que teriam tido filhos se soubessem quais eram as implicações. Entretanto, muitas das mulheres sem filhos com quem conversei depararam com perturbadores fluxos subterrâneos de sentimentos negativos e preconceitos inesperados contra elas. Estranhos contestavam sua feminilidade, sugerindo que eram frias e insensíveis, e a própria família questionava sua moralidade e maturidade (1997, p.156).

Reconhecer que ter filhos pode não ser o suficiente para a realização de uma mulher é proporcional a reconhecer os limites de uma série de “garantias de felicidade” introjetadas por nossa subjetividade em relação ao binômio mulher-mãe. Poderia questionar de onde vêm essas concepções, da natureza da mulher? Ou de uma vontade dominante produzida autoritariamente nos sujeitos? Ratifico o posicionamento de Elisabeth Badinter ao dizer: [...] Os valores de uma sociedade são por vezes tão imperiosos que têm um peso incalculável sobre os nossos desejos [...] A voz do ventre? Mas só hoje começamos a perceber como o desejo de ter um filho é complexo difícil de precisar e de isolar de toda uma rede de fatores psicológicos e sociais (1985, p.16).

Provavelmente esse tipo de análise não perpassa as discussões e planejamento, quando existe, da decisão de ter ou não filhos, muito menos da decisão de ser ou não mãe ou pai.

Opção pelos filhos: o que dizem os homens

Como analisar a opção pela maternidade, ouvindo homens, sem cair na paternidade? Ao longo das entrevistas, ficou claro que havia uma correspondência entre as representações de maternidade com a própria paternidade. Além disso, havia uma interdependência entre os sentidos atribuídos à maternidade e à paternidade, o que se justifica por estarem falando sobre uma experiência que está reconhecidamente localizada na outra pessoa. Assim, para os homens, a questão colocada foi sobre a opção pelos filhos.
Com relação à decisão de ter filhos, os homens demonstraram ter uma relação de dependência com a decisão de a mulher querer ter filhos ou não. Assim, quando falamos na opção pela maternidade em relação às mulheres, apesar de todas as limitações e entraves legítimos, possíveis a estas pela especificidade de gerar e parir, bem como apesar de toda pressão social existente para que exerçam a maternidade, ainda assim, pressupõe-se uma diferenciação com relação ao poder de decisão dos homens. Mulheres podem decidir ter filhos apesar da vontade dos homens de tê-los, enquanto que a recíproca não é verdadeira.
Nesse sentido, a maternidade pode prescindir da paternidade, mas a paternidade não pode prescindir da maternidade.

Considerações Finais
Quando decidi ouvir homens falando acerca de um assunto tão caracteristicamente marcado como “coisa de mulher”, não pensei poder somar tanto ao meu mundo feminino. A maternidade não era mais a soma de concepções de mulheres e homens,  mas a interação dessas. Meu referencial de homens e mulheres sofreu mais uma vez transformações significativas. Compreendi que a maternidade se configura muito mais em “maternidades” do que em uma forma única de vivenciar uma prática social que tem a cara do seu tempo histórico.
Não existe uma concepção universal sobre o que venha a ser maternidade. Implicações políticas, culturais, econômicas contribuem no sentido de produzir sentimentos de amor, de ódio, de culpa, de alegria, de tristeza, que servem em grande parte para nos inscrever em um padrão de normatização responsável por identificar e classificar os comportamentos, “esquadrinhando os corpos” e conformando os sujeitos ao que está instituído como sendo o natural, o certo, o invariável.
Interessante notar que, a educação esteve expressa nas condições estruturais nas quais são representadas as experiências com relação à maternidade. Destaco a concepção naturalizada que perpassou a opção pela maternidade, bem como a compreensão predominante de ser responsabilidade das mulheres o cuidado com os filhos ou filhas, retratando um modelo estereotipado de ser mãe; a importância da forma como o tempo se caracterizou para as mulheres - assumindo peculiaridades sexistas- ainda não totalmentesuperadas pelas mesmas; a decorrência das duplas jornadas de trabalho, no empreendimento profissional das mulheres. As evidências da dimensão educativa podem ser observadas ainda quando, Cristina diz sempre ter idealizado ter filhos; na projeção da maternidade de Márcia quando, desde a sua adolescência, achava que podia ser uma pessoa sozinha “sozinha eu digo, sem marido, não sem filho”; na concepção de Joel acerca a maternidade ser uma experiência mágica “que em geral, toda mulher quer ter”; na perspectiva de filho que Carlos expressou; na maternidade como coisa de menina à que Guta se referiu.
Os olhares que construíram as várias possibilidades de “maternidades” expressas neste trabalho transitaram entre o singular e o coletivo. Houve momentos em que as falas pareciam sintetizar o cruzamento de valores de tantas pessoas; outros, em que a experiência relatada parecia ser singular. Assim, transitei entre Márcia, Cristina, Joel, Carlos e Guta,  entre todas as pessoas que significaram suas vidas.
De alguma forma, a internalização de valores como resultado da maneira como fomos socializadas, educadas, persiste em nós, conduzindo “nossos desejos”. Mas se os vários cruzamentos fizeram da maternidade o que ela está sendo hoje, serão também os vários cruzamentos que irão possibilitar a sua desconstrução. Cruzamentos de olhares que entendam as maternidades para além do bem ou do mal.


Referências Bibliográficas

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