23.2.12

Manicômio judiciário de franco da rocha: clínica e ética

Manicômio judiciário de franco da rocha: clínica e ética*

Loucos no manicômio. Franscisco de Goya y Lucientes. Museu do Monastério de Guadalupe


Margarida Calligaris Mamede

Doutora e mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo
Psicóloga licenciada do Manicômio Judiciário de Franco da Rocha-SP Professora/supervisora da Universidade Cruzeiro do Sul – SP.
Psicoterapeuta
Resumo: Este artigo narra a experiência vivida durante os últimos quinze anos junto às pacientes internadas na Colônia Feminina do antigo Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, no Estado de São Paulo. A proposta de atendimento terapêutico utilizando cartas e fotografia nasceu dos inúmeros pedidos feitos pelas próprias pacientes e da necessidade de prover, minimamente, um cuidado humano para aquelas pessoas acometidas por transtornos mentais graves. Os referenciais teóricos utilizados foram à psicanálise de Donald Woods Winnicott e a filosofia de Lévinas, além de Walter Benjamin, Gilberto Safra e de fotógrafos brasileiros.


Palavras Chave: ética, clínica, cartas, fotografias, doença mental.

MANICOMIO JUDICIÁRIO DE FRANCO DA ROCHA:
CLÍNICA Y ÉTICA


Resumen: Este artículo narra la experiência vivida durante los últimos quince años junto a las pacientes internadas em la Colônia Femenina del antiguo Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, em la Província de São Paulo. La propuesta de atendimiento terapêutico utilizando cartas y fotografias nació de los inúmeros pedidos hechos por lãs propias pacientes y de la necesidad de prover, minimamente, um cuidado humano para aquellas personas acometidas por transtornos mentales graves. Los referenciales teóricos utilizados fueron la psicoanálisis de Donald Woods Winnicott y la filosofia de Lévinas, además de Walter Benjamin, Gilberto Safra y de los fotógrafos brasileños.

Palabras Clave: Ética; clínica; cartas; fotografias; enfermedad mental




Introdução
As reflexões apresentadas neste trabalho são resultados de indagações e angústias decorrentes de minhas tentativas de oferecer um acolhimento mínimo para o sofrimento das pacientes internadas na Colônia Feminina do antigo Manicômio Judiciário do Estado de São Paulo, atual Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima, ligado à Secretaria da Administração Penitenciária, situado na cidade de Franco da Rocha, na grande São Paulo.
Há 15 anos trabalhando nesse Hospital, tenho me deparado com histórias de vidas marcadas por sofrimentos que começaram, na maioria das vezes, quando estas mulheres foram abandonadas por seus pais ainda bebês ou crianças pequenas. Em muitos casos, esse abandono precoce levou-as, quando adultas, a episódios de violência subjetiva e concreta, direcionadas a si mesmas ou a outros.
Justamente por me ver diante de dores e de situações institucionais que pareciam perpetuar os mais diversos modos de violência, passei oito desses 15 anos estudando no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, tentando encontrar uma maneira de acolher a dor daquelas mulheres. Nele realizei mestrado e doutorado, ambos com orientação de Gilberto Safra. Este artigo, traz as reflexões essenciais de minha tese de doutorado defendidas no ano de 2002. Tais reflexões e a proposta do trabalho terapêutico que surgiu a partir delas não têm a intenção de propor uma nova técnica e se contentam em ser apenas uma proposta clínica, um procedimento que talvez possa ser utilizado por aqueles que nele encontrar sentido e rigor, além de uma possibilidade para aprofundar o pensamento clínico.

Faz-se necessário registrar que uma de minhas preocupações, tanto nos anos de doutorado quanto ao preparar o livro, foi à divulgação das fotografias e das cartas que o ilustra. Num primeiro momento, por questões éticas, inclinei-me a não as utilizar, evitando a exposição das pacientes. No entanto, as pacientes sempre me solicitavam que mostrasse “aos outros do mundo” suas fotografias e cartas, sobretudo quando expliquei a elas que realizaria uma tese e, posteriormente, publicaria um livro que discutia o tratamento que realizava com elas.

Diante dessa solicitação, refletida com mais detalhes no livro, e da proposta terapêutica que as utiliza, decidi utilizar algumas imagens que incluem as fotos e registro das cartas, acreditando que elas possam expressar com mais legitimidade tanto as propostas de meu trabalho como a repercussão dessas imagens na vida das pacientes.
Com o objetivo de preservar a ética sobre a qual se deve pautar o trabalho científico com seres humanos – através, neste caso, do respeito às pacientes com sigilo e não exposição – e levando em conta o pedido delas, elaborei um documento com as considerações feitas pelo CONEP – Conselho Nacional de Ética em Pesquisa – do Ministério da Saúde e com a Resolução do Conselho Federal de Psicologia (no. 016/2000). O Juiz responsável pela Corregedoria dos Presídios do Estado de São Paulo emitiu parecer sugerindo que as pacientes ou seus representantes legais emitissem as autorizações, que foram providenciadas. Cópia do livro também foi enviada ao próprio CONEP para análise que, através de sua Secretaria Executiva, em ofício de julho de 2005, relatou dar pareceres apenas para pesquisas em andamento e não para as já concluídas.

As pacientes

A maior parte das pacientes pertence às classes sociais menos favorecidas, trazendo em seus históricos marcas fortes da marginalização e exclusão, muito em função do abandono precocemente vivido. Talvez por isso, uma das marcas da minha rotina é ser requisitada por elas de modo a lhes providenciar objetos e cuidados aparentemente simples e desprovidos de um conteúdo subjetivo maior. Outra marca, que caminha paralelamente a estas demandas, é a constatação do aumento de pacientes jovens que, tão cedo, acabam adoecendo física e psiquicamente, seja nas penitenciárias, onde cumprem suas sentenças pelos crimes cometidos, seja quando em liberdade. A loucura parece aumentar dia após dia. A solidão gerada pelo abandono parece ter se tornado rotina na vida de grande parte das pacientes ou, quem sabe, esta não chegou sequer a ser uma vida, se pensarmos nos movimentos necessários que possam colocar um ser humano em marcha , como preconizava Donald Woods Winnicott ( 1896-1971 ).

Diante de tantos e de insistentes pedidos, muitas vezes me sinto impulsionada a abandonar tudo o que tenho a fazer quanto à rotina (atendimentos agendados, afazeres burocráticos, visitação às pacientes nas solitárias e reuniões) para ouvir e escrever, numa lista, esses pedidos, ponderando posteriormente quais deles estão ao meu alcance de resolver. Outras tantas vezes sinto-me exausta, tamanho o montante de solicitações feitas ao mesmo tempo.

Quando os pedidos partem das pacientes mais jovens, muitas com rostos nos quais impera ainda uma expressão infantil (com a pele lisa, sem muitas cicatrizes; pele de rosto de adolescente, sem rugas), vejo-me profundamente tocada, condoída, por entender o grande paradoxo que esses rostos trazem: tão jovens, mas inversamente tão deteriorados, com um futuro aparentemente sombrio, como se já fossem velhos porque não há esperança e parece não haver rastro ou lampejo de vida. Em muitas delas, apesar de o rosto ter aparência pueril, o corpo reflete o que está estraçalhado: por exemplo, o comprometimento neurológico em decorrência do uso do crack já deixou seqüelas irreversíveis e qualquer derradeiro sinal de vida parece frágil, incipiente.

Quando o pedido vem das mais velhas, percebo que a voz é densa, baixa; muitas vezes preciso olhar mais para o rosto delas do que tentar ouvir o que dizem e, com isso, as marcas no rosto e no corpo acabam tomando imediatamente minha atenção (as mais velhas, ao contrário das jovens, são mulheres geralmente sem dentes, com cicatrizes de cortes espalhadas pelo rosto e pelo corpo e com problemas clínicos que raramente são considerados pela equipe médica).

Diante destas circunstâncias, quando sentia a necessidade de promover algum espaço para dar-lhes acolhimento, de maneira que o sofrimento e a dor delas pudessem ser comunicados e compartilhados, vi-me, em alguns momentos, sem esperança de que algo pudesse fazer sentido no meu trabalho. A desesperança aumentava quando eu constatava que nada, ou pouco, adiantava promover condições mínimas para o resgate da saúde psíquica, uma vez que o ambiente se mostrava tão adverso. Refiro-me aqui tanto ao ambiente do Manicômio quanto ao ambiente de onde vieram: a rua, as instituições reformatórias, a família aparentemente desorganizada e incapaz de oferecer qualquer tipo de suporte. Portanto, estamos diante de ambientes que se caracterizam pela exclusão, pelo abandono emocional e concreto, e pela violência não só física, mas principalmente subjetiva .
Fui constatando ao longo do tempo que a constituição da subjetividade dessas pessoas é marcada por buracos no self (Winnicott, 1988) e por falhas importantes de desenvolvimento psíquico que comprometem o amadurecimento psíquico, de tal forma que eu tinha a impressão que nada mais me restava fazer. Abandonadas, essas pacientes sofrem humilhações e a posição delas diante da vida é tentar não serem devoradas. Reagem, desta forma, enlouquecendo, tornando-se violentas, ou apáticas, delinqüindo ou morrendo mergulhadas nas drogas.
Com tanta exclusão, dor e violência, perguntava-me: o que poderá ajudar essas pacientes a se sentirem minimamente vivas? Qual é o lugar delas? Onde elas poderão estar além da rua, ou da prisão, ou do Manicômio? Será que um dia existirá um lugar melhor para elas? Passei, então, a observar o que elas traziam de concreto que me ajudasse a ajudá-las; as cartas que me escreviam e as fotografias delas próprias despontaram como possibilidades.


As pacientes, as cartas e as fotografias

A história com as fotografias surgiu ao acaso, quando passei a levar minha câmera para registrar passeios curtos que fazíamos com elas, nos arredores da Colônia. Cada vez que isso acontecia, elas cobravam muito de mim para que eu levasse novamente a máquina fotográfica. Dada à insistência, passei a levá-la despretensiosamente, sem me dar conta da força que a fotografia adquiria.

Para fotografá-las foi necessária uma autorização judicial, pois registrar imagens é proibido dentro da Instituição. Aliás, este é um fato digno de atenção: não somente há poucos registros escritos a respeito da vida e da história da Instituição, como as anotações em prontuários são escassas. Assim, quando se fala em fotografias ou outro tipo de registro, funcionários imediatamente temem e tentam coibir, livrando-se e desfazendo-se de qualquer meio que fiquem guardados, seja em um lugar concreto, como armários e paredes da Instituição, sejam na memória daqueles que direta ou indiretamente participam da vida ali dentro da Instituição. Em contrapartida, como poderão ser acompanhadas neste trabalho, as pacientes solicitava insistentemente que se registrassem seus rostos, suas vidas, nas imagens fotográficas. Não tenho como não dizer isto, já que foi um dos pedidos que soou mais forte para mim, justamente por ser interminável e insistente. Se eu levava a câmera fotográfica diariamente, ou esporadicamente, isto não fazia a menor diferença, pois os pedidos eram dirigidos com a mesma intensidade e teor que foram feitos nas primeiras vezes que se viram diante dela. Quando eu não levava a câmera, continuava fazendo retratos silenciosos dentro de mim, conforme andava pelo pátio e olhava para aqueles semblantes.

Percebi que, à medida que as pacientes viram as primeiras imagens, ficaram tomadas por sentimentos intensos e antagônicos. Queriam que eu tirasse muitas fotos, eram insistentes nisso, mas, quando se viam, surpreendiam-se e ficavam decepcionadas.
Algumas chegavam a negar sua imagem e rasgar suas fotos, porque não se reconheciam mais, mas logo voltavam a pedir mais e mais. Outras, em movimento oposto, quase nem olhavam, mas permaneciam horas com a fotografia nas mãos, firmes, como se estivessem segurando a si mesmas – para estas, a foto parecia ter um efeito organizador. Ao perceber que este fato se repetia, decidi levar adiante o projeto de fotografá-las.

Em um primeiro momento também fiquei surpresa com este tipo de reação e assustei-me com a força da negação delas diante do que viam, iguais à força da insistência para fotografá-las. Eu não poderia imaginar, ou ver concretizada, essa negação de uma forma tão explícita. Ficava paralisada, sem saber o que fazer, tentando mostrar-lhes que eram elas nas fotos. Tive de lidar, inclusive, com uma avalanche de sentimentos intensos e terríveis, como o ódio, por exemplo, pois quem mostrava e lhes entregava as fotos era eu.
E, assim, elas me rechaçavam também, pois sentiam que eu tinha em minhas mãos a imagem nua e crua delas, primeiramente sentida como repugnante, irreconhecível, com as quais elas não queriam se aproximar e se apropriar. Mas, contraditoriamente, elas voltavam resignadas, com o olhar trêmulo, pedindo-me outra imagem, outro retrato.
Existe um fato concreto que deve ser considerado e ter contribuído, por um lado, para este distanciamento da imagem de si mesmas e, por outro, para este agarrar-se à fotografia: era proibido usar espelhos no Manicômio, por se tratar de um objeto que representa perigo (é um objeto cortante) como instrumento de auto ou heteroagressão. Sendo assim, as pacientes passavam meses, até anos, sem terem a possibilidade de ver seus rostos refletidos em algum lugar. A internação traz mudanças inclusive no corpo delas; não apenas o sofrimento redimensiona suas expressões faciais, tornando-as mais envelhecidas e tristes, a medicação freqüente provoca excessivo ganho de peso. Grande parte perde a imagem corporal que havia formado um dia (se é que chegaram a formá-la) e não se reconhecem depois de algum tempo.

A voracidade com que pediam mais e mais fotos, apesar de detestarem algumas, assinalava que talvez estivessem, ainda que bastante distantes de si mesmas, fazendo um apelo para que eu as auxiliasse justamente neste reconhecimento, para que eu as ajudasse a encontrar o que estava tão distante, tão estranho, tão à margem delas mesmas: a imagem do verdadeiro eu, ou melhor, de um eu que não as assustasse tanto, que não lhes soasse tão estrangeiro, podendo ser sentido como próprio.
Resolvi aprofundar o trabalho com as fotografias por perceber a força destas na comunicação que as pacientes tentavam estabelecer comigo, bem como devido ao grande número de internas sob minha responsabilidade, o que impossibilitava um trabalho terapêutico tradicional.

Quanto ao uso das cartas, passei a prestar atenção nesta possibilidade de comunicação porque elas espontaneamente me escreviam bilhetes, me davam cartões de Natal, e me entregavam desenhos. Em um primeiro momento, comecei a retribuir os cartões de Natal, de Dia das Mães e outros de datas comemorativas. Percebi que elas ficavam notoriamente felizes quando eu as respondia por escrito. Nas conversas com meu orientador de doutorado, enfatizava muito a intensidade da gratidão e a quantidade de pedidos que vinha delas nas correspondências; com isso, fomos percebendo que talvez todo este material poderia abrir espaço para uma possível intervenção terapêutica.

Algumas dificuldades presentes na elaboração desse trabalho

A população internada no Manicômio sofre as conseqüências drásticas da falta de devoção humana, tanto nas primeiras esferas dos cuidados exigidos, exemplificadas como aquelas que logo cedo foram abandonadas, como nas esferas posteriores (quando o self já se encontra integrado e consegue se diferenciar da mãe). Um ciclo atroz de solidões e desamparos inchou e fez crescer nossa sociedade, retrato bruto da falta de dedicação e de identificação com as necessidades humanas. Desenganos somaram-se a descuidos, que se somaram às violências em suas várias facetas, culminando num estado perpetuado de pessoas imaturas, cada vez mais incapazes de cuidar.

Enquanto Winnicott passou parte de sua vida tentando nos mostrar o que o ser humano necessita para sentir-se como tal, em meu trabalho me defrontava, a todo instante, com a falta das condições descritas por ele. Os “buracos” que fui constatando nas vítimas de intermináveis descuidos me aproximaram também de Lévinas, com sua filosofia voltada para a “sabedoria do amor”. Para este autor, a filosofia é a ética primeira, enquanto exercício da alteridade que se manifesta a partir do momento em que sou impelido ao outro, em que me responsabilizei pelo outro na sua alteridade e na sua subjetividade, não tentando reduzi-lo a nada, mas tentando recebê-lo. Para Lévinas, só a partir do momento em que olho para o rosto do outro e reconheço nele uma linguagem, posso acompanhá-lo na sua solidão, e ao ouvi-lo, a existência e a vivência do ser acontece.

A noção de responsabilidade pela dor do outro é extremamente complexa na obra de Lévinas, pois tem como base a idéia de transcendência. Para esse autor, o homem é transcendência e, por isso, não há nada de absoluto que o represente, que encerre uma concepção do que ele é ou não é. É justamente o fato de eu me implicar no seu cuidado, apesar de sua transcendência, que faz com que eu o reconheça como tal. Por isso, para Lévinas, essa implicação com o outro transcende até a própria morte e nela não se encerra. A vivência da responsabilidade parece permear todo o sentido em relação ao outro, outro que sempre me diz respeito.

Viver a responsabilidade permite, por sua vez, entender a noção de sensibilidade, que se traduz na possibilidade de responder pelo outro, o que não significa conhecer o outro, mas simplesmente atendê-lo como humano. Lévinas ressaltou o quanto à ânsia do homem em conhecer o outro, implica, justamente, uma limitação que afasta o homem da transcendência. O rosto, para esse autor, é fundante, porque lembra a transcendência. Sendo assim, relacionar-se humanamente é receber o outro, antes mesmo de pensá-lo ou de decidir sobre esse recebimento. Essa concepção associa-se ao pensamento de Winnicott, relativo à necessidade de devotar cuidados ao bebê, pois, sem cuidado e sem acolhimento, não há possibilidade de vida.

A maioria das fotografias expostas no livro são retratos. As pacientes, quando vinham para perto da máquina, olhavam para ela e para mim como se tivessem só o rosto. Era impressionante como o rosto e o olhar prevaleciam quando elas se aproximavam para serem fotografadas. Era como se elas me “intimassem” a ajudá-las a matar a dor, a fazer dela nossa inimiga, tentando substituí-la pela esperança com a vida.

Por isso foi tão difícil para mim escrever sobre o que eu via e vivia, já que o que me importava era reconhecer o que aqueles rostos suplicantes me diziam e para o que me chamavam. Assim, é possível que minha função tenha sido reconhecer esses rostos na dor, no sofrimento, no abandono e na violência. Lévinas (1984, p. 80) diz que o rosto do outro que me olha está sempre nu, que ele é pobre e a ele eu devo tudo.

Costa (2000, p. 119) afirma que, para Lévinas, a violência é “aprisionar todos os entes, diferentes entre si, numa generalização que os condiciona e os condena a ‘não poder deixar de ser’, a ‘não poder ser ‘outro e a ‘não poder ser diferente”. Minha tentativa foi justamente promover um ambiente no qual as pacientes pudessem ser alguém além dos nomes e classificações que lhes foram concedidos tratando-as como seres únicos e levando sempre em conta que seus sofrimentos eram profundos.

Sobre o ato fotográfico
Ainda que a fotografia tenha sido um instrumento fundamental neste trabalho, não me sinto autorizada, tampouco habilitada, enquanto psicóloga, a discorrer sobre ela de maneira apropriada. Passei a utilizá-la muito mais em função de ser sua admiradora e de perceber o impacto que ela provocava nas pacientes. Conforme fui constatando que as fotos eram importantes às pacientes para resgatar todo um universo de sentidos que jamais havia sido experimentado, busquei contribuições teóricas que, repito, não me tornaram, ainda assim, uma profunda conhecedora da história da fotografia. Apenas para situar o leitor nos caminhos que cruzei e nos quais me respaldei, apresento algumas informações sobre o tema.

Desde o seu surgimento, em 1839, a fotografia tem sido objeto de estudo no campo das artes, da filosofia, da história e da ciência. Naquela época, era chamada de daguerreótipo - por ter sido descoberta pelo francês Louis Jacques Daguerre - e despertava interesse por possibilitar imprimir imagens sem, no entanto, conseguir reproduzi-las. Para nós, brasileiros, é especialmente interessante a biografia de outro francês, Antonie Hercule Florence, que chegou ao Brasil em 1824 e aqui permaneceu até sua morte. Esse homem, um artista muito interessado em vários campos do conhecimento, considerado por muitos um gênio, em 1833, conseguiu obter impressões em série, utilizando-se do seu conhecimento em química. Kossoy (2002) relata em seu Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro que, como estávamos aquém das descobertas preconizadas pela Revolução Industrial na Europa, o anonimato das descobertas de Florence durou cerca de 140 anos, tirando o Brasil do cenário oficial da descoberta da fotografia (p. 144). Segundo Kossoy, atualmente há um consenso no meio acadêmico e científico atribuindo a descoberta da fotografia a diversos “pais”, entre eles Gaguerre, Fox Talbot, Nièpce, Bayard e Florence (p. 144).

Inicialmente utilizada com a finalidade de atender à burguesia crescente, a fotografia servia para enviar as imagens que atestavam a grandeza dos lugares, a genialidade das descobertas e a nobreza dos burgueses, que exaltavam seu uso através, sobretudo, dos retratos.

No campo da história da arte, uma discussão inicial permeou a sociedade no final do século XIX: deveria a fotografia ser considerada arte? Não seria ela uma pretensa maneira de imitar a pintura? No início do século XX, essas discussões parecem ter sido esquecidas e deu lugar a reflexões vindas de alguns filósofos, entre eles Walter Benjamin, sobre a contribuição da fotografia. Uma discussão sobre a aura na concepção desse autor seria pertinente para falarmos sobre o significado que ele conferiu à fotografia, mas nesse momento me abstenho de realizar essa discussão por necessitar de um parêntese deveras complexo aqui.

As reflexões sobre o uso da fotografia –como arte e meio de expressão, inclusive da subjetividade humana - ganharam corpo na Europa e nos Estados Unidos nas décadas de 1950 a 1980, quando Susan Sontag e Roland Barthes discorreram sobre sua importância. Entretanto, para este trabalho, respaldei-me mais nas leituras de autores brasileiros (fotógrafos, antropólogos e historiadores) que abordaram sobre a contribuição da fotografia para a preservação da memória, a educação do olhar e para a possibilidade de ela ser utilizada como narrativa de fatos do mundo e da vida.

Há uma tendência entre autores nacionais e estrangeiros em acreditar que a fotografia não apenas registra e marca a história, mas pode ser usada como instrumento de delação.

Neste trabalho, no que se refere à experiência que tenho vivido com as pacientes internadas no Manicômio Judiciário, em nenhum momento senti que as fotografias poderiam ser utilizadas com a finalidade de delatar. Para esse propósito, eu teria de ter realizado outro trabalho e não é essa minha intenção. Ao contrário, pautei-me na prerrogativa levantada por Benjamin, segundo a qual a fotografia educa. Educou meu olhar, tornando-o mais atento ao pedido que as pacientes dirigiam a mim. Educou-me, ainda, na medida em que em me fez silenciar diante do olhar suplicante e insistente delas; foi um silêncio fundamental para poder ouvir o que o olhar delas pedia e, a partir daí, permitir a comunicação que, por sua vez, abriu espaço para a esperança.

Outro ponto que acredito ser digno de registro nessa apresentação é o poder mágico que a fotografia exercia sobre aquelas pacientes revelando o nascimento de algo entre nós que eu ainda não conseguia nomear e explicar. Algo me fazia acreditar que as fotografias tornavam-se sagradas ao atestar a existência das pacientes. Andrade (2002) discute essa idéia: A sacralidade estaria no entendimento de serem muitos possíveis, de ser interdisciplinar e estar aberto para o entendimento do outro “(...) as fotografias mostram o que não somos capazes de ver”.

Nesse sentido, a fotografia proporcionou o resgate da esperança, a partir do momento que permitiu que as pacientes guardassem dentro delas a memória de uma relação sem violência que nasceu entre nós, permeada e mediada por fotos. E abriu a possibilidade, para mim, de vê-las com mais cuidado. Sobre o resgate da identidade proporcionado pela fotografia, Andrade, afirma:
“(...) Todas essas imagens nos levam a resgatar o prazer do instante, do momento presente e do ausente, daquilo que passou, mas permanece na memória. Olhamos para fotografias para resgatar o passado no presente...Existe uma magia quando imortalizamos as pessoas e o tempo nas fotos. Para as tribos urbanas, fotografias são como provas de sua existência, de sua identidade e história”.
“(...) As fotografias eram provas de continuidade e, ao mesmo tempo, memória de sua própria história...Recorremos às fotografias para fazer presente o que ou quem está ausente. Nossa identidade individual depende da memória – e a fotografia é uma atividade fundamental para o contorno dessa identidade, seja para a auto-afirmação, seja para o conhecimento.( ANDRADE: 2002, p. 49).”

Antes de pensar a fotografia como sinal de identidade para essas pacientes, é preciso entender que ela possibilitou o nascimento de um sentimento provavelmente inusitado na vida delas: o de estarem vivas em um contexto não mais fundado na violência e no abandono. Assim, a foto parece ter se constituído como presença na companhia de alguém. Novamente recorro a Andrade (2002), que citando Pollak (1989), diz: “(...) Através das imagens, podemos aproximar mais as lembranças e as sensações daquilo que vivemos e estamos vivendo”.(p.70)

As fotografias também me ajudaram a olhar para aquilo que era sutil e não aparecia de modo explícito, embora contundente subjetivamente. Tornou-se um dever reaprender a olhar para aquelas pacientes, permitindo apreender o que se passava entre nós, sobretudo a manifestação de busca por contato humano.

Com essas primeiras reflexões, fica aberta uma questão: a fotografia, no terreno da psicologia e psicanálise, pode tornar-se um instrumento de criação de novas possibilidades. Philippe Dubois, um grande estudioso da fotografia na França, afirma que é necessário que o fotógrafo faça mais do que fotografar; para ele, o fotógrafo deve biografar.
Espero que com essas informações preliminares e, posteriormente, com a leitura das outras reflexões, o leitor possa compreender que minha tentativa, ao usar a fotografia e o ato fotográfico com as pacientes, foi justamente esta: ajudá-las a estabelecer suas biografias.

Sobre as cartas

O uso de cartas como instrumento terapêutico para psicólogos e psicanalistas é ainda inusitado. É provável, no entanto, que profissionais dessas áreas utilizem esse recurso esporadicamente e não tenham discorrido cientificamente ou compartilhado suas experiências em literatura específica.

Neste trabalho, um texto foi fundamental: “Quando o carteiro não chegou” (1998), de Ana Maria Seraidarian Najjar, me foi apresentado quando eu começava o doutorado. Ele me inspirou e tornou-se uma das mais importantes referências para tudo que consegui elaborar sobre o uso das cartas, sempre refletindo sobre uma maneira de usá-las para ajudar terapeuticamente as pacientes. Najjar tem se aprofundado nos estudos sobre o uso terapêutico das cartas com crianças que sofreram abandono e, em breve, deverá publicar novos trabalhos sobre esse tema.

A teoria winnicottiana já me era familiar e nela respaldava meu trabalho há muito tempo, como afirmei anteriormente, mas foi nesse texto de Najjar que encontrei sustentação para acreditar que o trabalho com as cartas poderia tornar-se fonte de esperança e referência subjetiva para as pacientes, sendo um possível instrumento terapêutico.

Em 2004, iniciei um projeto piloto na Clínica-Escola da Universidade em que leciono, com o objetivo de analisar a possibilidade de as cartas ajudarem pessoas em profundo sofrimento psíquico (não internadas em hospitais psiquiátricos) que recebem tratamento psicológico, psiquiátrico e social nessa Clínica. Um artigo sobre esse projeto foi escrito (ainda não publicado), narrando à experiência e tecendo reflexões sobre a importância que as cartas podem ter para ajudar esses pacientes a resgatarem minimamente a comunicação com o mundo ao redor.

Apesar da ausência de estudos científicos na área da psicologia e psicanálise, há, na literatura brasileira dos últimos anos, um aumento significativo de livros que trazem cartas trocadas entre poetas, romancistas, juristas e filósofos. Parece estar havendo, sobretudo no campo das artes, um despertar para a importância que as cartas tiveram ou ainda têm na vida das pessoas e na comunicação humana, hoje tão depauperada e comprometida com o uso e avanço da tecnologia.

Em 2005, o fotógrafo Mário Rui Feliciani publicou um trabalho, fruto de uma exposição realizada em Brasília alguns anos antes, sobre caixas de cartas. Percorrendo principalmente a periferia da Grande São Paulo, ele tentou resgatar o sentido que as cartas poderiam ter na vida das pessoas, observando como, nas situações mais inusitadas, sempre houve a preocupação de deixar o espaço nas casas preservado para o recebimento das mesmas. Ele relata:
"Um acontecimento em Brasília foi especialmente marcante. Era a abertura da mostra, havia autoridades, televisão, e foi-me trazida uma senhora que não conseguia falar. Chorava. Quando perguntei o porquê, disse que as caixas a tinham comovido, que “minha filha está tão longe”. (FELICIANI: 2005, p.14)

Enquanto escrevia essa parte do livro, não pude deixar de pensar na grande coincidência que era ter nas mãos um livro de fotografias sobre caixas de correio e de cartas.

Dispensando, nesse momento, uma análise mais rigorosa sobre essa coincidência, acredito que elas (cartas e fotos) devem, realmente, contribuir para o cuidado com a subjetividade humana na sua mais profunda expressão. Parece que, cada vez mais, são objetos da nossa cultura que voltam depois de um tempo esquecidos a habitar, com força, o universo humano, no seu anseio para sair da solidão e da tristeza.

Para ilustrar essa breve apresentação sobre o uso das cartas e algumas coincidências entre elas e as fotografias, recorro à transcrição de uma carta de Elizabeth Barret, escrita para Mary Mussel Muitford em 1843, apresentada no livro de Susan Sontag, quando esta homenageia Walter Benjamin:

Desejo ter uma lembrança de todos os seres que me são caros no mundo. Não é apenas a semelhança que é preciosa, nesses casos – mas a associação e a sensação de proximidade implicada na coisa (...) o fato de a própria sombra da pessoa que está ali ter sido fixada para sempre! É a própria santificação dos retratos, eu creio – e não é de modo algum monstruoso da minha parte dizer, por mais que meus irmãos protestem de forma tão veemente, que eu preferiria ter um tal monumento de uma pessoa que amei afetuosamente a ter mais nobre obra de um artista jamais produzida. (SONTAG:,p.199)


Últimas considerações

O recorte do trabalho apresentado aqui teve como objetivo principal mostrar apenas como se faz necessário, na atualidade, não apenas educar nosso olhar dirigido ao sofrimento humano, mas também necessitamos buscar intervenções que nos ajudem a cuidar da dor alheia.

Infelizmente as condições gerais dos manicômios judiciários no Brasil, além de inóspitas e ineficientes, perpetuam um cenário de miserabilidade humana que não deveria existir. Tem sido difícil manter a crença nas instituições e nos órgãos competentes. Porém, dentro da nossa responsabilidade com o cuidado daquelas pessoas, não devemos nos paralisar diante do caos. É preciso seguir, quem sabe escrevendo cartas para o mundo e mostrando as fotografias tristes que retratam o abandono daquele lugar.
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*Publicado na Revista da Escola Superior Dom Helder Câmara -Veredas do Direito Vol. 3 - Nº 6 - jul. a dez. - 2006
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