10.3.11

A (DES)CONSTRUÇÃO DA MATERNIDADE

A (DES)CONSTRUÇÃO DA MATERNIDADE

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PINTO, Maria das Graças C. da S. M. G. – Uniplac/Unifra – profgra@terra.com.br
GT:Gênero, Sexualidade e Educação / n. 23


Introdução

A maternidade tem se constituído cada vez mais em uma prática social que precisa ser repensada. Afinal, muito além de uma possibilidade biológica da mulher, a maternidade está permeada por valores que são pertinentes aos momentos e necessidades de um dado
período histórico. Considero, em um âmbito mais amplo das relações sociais, que a maternidade não se constitui apenas em uma prática restrita a mulher - que é mãe – mas envolve também o grupo nos quais suas relações sociais estão sendo estabelecidas.
Neste sentido, a maternidade deverá ser pensada também por meio das construções sociais de gênero, já que é pela relação entre os sexos que damos significado aos fatos sociais. Sem dúvida, ao falar em maternidade, existe um recorte implícito que, de certa forma, demonstra uma visão filtrada pelos olhares dos sujeitos de uma classe social, uma etnia e um sexo, que convivem em uma cultura específica.
A proposta desse trabalho é fruto de uma pesquisa de campo, que objetivava compreender as representações que homens e mulheres tinham acerca da maternidade.
Assim, após ouvir cinco pessoas1, três mulheres e dois homens por meio de entrevista semiestruturada  e pela metodologia de História de Vida, foi possível perceber a dimensão cultural influenciando as concepções, desejos e culpas em relação à maternidade. Alguns critérios foram respeitados para a escolha dos sujeitos, tais como: que estes tivessem filho(s), que vivessem ou tivessem vivido em situação conjugal, mesmo que por algum tempo, com a mãe ou pai biológica(o) deste(s) filho(s), que não houvesse grau de parentesco entre os sujeitos.

1 Nomes fictícios dos sujeitos: Márcia, trinta e oito anos, casada, tem uma filha, com treze anos e um filho com oito anos. Guta, trinta e quatro anos, casada, tem um filho com oito anos e uma filha com três anos. Cristina, quarenta e cinco anos, casada com Cristiano, professor, quarenta e nove anos. Tem três filhas uma com dezessete anos, outra com quatorze anos e uma com doze anos. - Carlos, quarenta e três anos, teve um relacionamento com Carmem, com quem teve uma filha, com quinze anos. Casou-se com Adriana, com quem teve um filho, com nove anos. Joel, trinta e quatro anos, casado, tem uma filha, com dois anos. (Idades correspondentes ao momento da coleta de dados).

A proposta de ouvir homens é porque entendo existir uma interdependência entre estes olhares específicos, o que acaba por justificar o viver socialmente. Em outras palavras, não se vive socialmente sem que haja uma isenção de sentidos entre o individual e o coletivo, tampouco entre os sexos, classe social, etnia, enfim, pelas características que marcam determinada cultura.

A maternidade nas fronteiras de Gênero

O processo de construção subjetiva da maternidade se dá também pelo que homens vivenciam e até imaginam ser a maternidade. Mulheres e homens têm formas distintas de significar uma mesma prática e indubitavelmente o sexo, seja biológico ou social, assume um marco diferencial nessa subjetivação. Nesse sentido, a perspectiva de gênero2 serve como importante aporte epistemológico para compreender a dinâmica relacional destas práticas sociais. Como diz Scott “o gênero é então um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre as diversas formas de interação humana” (1990, p.16).
A proposta central de gênero está, então, no reconhecimento da existência de uma relação entre a construção social de mulheres e homens, demarcando, dessa forma, a distinção entre a ordem biológica e social, no que diz respeito a como são construídas as diferenças entre os sexos. Gênero segundo Joan Scott, constitui-se em uma categoria de análise onde o núcleo essencial de definição repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições. O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder (1990, p.14).

Opção pela maternidade: o que dizem as mulheres

2 A terminologia gênero pressupõe um percurso histórico relacionado à evolução do movimento feminista, bem como a própria enunciação das mulheres como sujeitos que construíram, e constroem a história. Para aprofundar o tema ver: Flax, (1991); Kofes (1993); Louro (1995).
Opção resulta em possibilidade de escolha. No que diz respeito à maternidade, nem sempre essa relação tem se mostrado tão fácil de ser percebida. Grande parte das vezes parece predominar um caráter de obrigatoriedade nessa “opção”.
Uma das primeiras indagações feitas aos sujeitos da pesquisa, dizia respeito a como ocorreu à opção pela maternidade. Segundo Cristina, essa decisão foi muito discutida, juntamente com seu marido, tendo surgido muitos momentos de “recuo”. Para Ela a “opção” por ter filhos a acompanhou desde muito cedo, inclusive com certo caráter de idealização. No caso de Márcia, esta relatou que ser mãe era um desejo desde a adolescência.
A opção pela maternidade demonstra estar menos relacionada com uma escolha do que propriamente com um fascínio, uma decorrência óbvia e natural da existência feminina.
Parece que outra possibilidade, como não ser mãe, não está tão fortemente inscrita, seja na infância, na adolescência ou na vida adulta. Dificilmente ouviremos alguém dizer: sempre quis não ser mãe.
Provavelmente um dos motivos para não se reconhecer o fato de que a maternidade deveria se configurar efetivamente em uma opção, esteja no peso social que recai sobre as mulheres que dizem não a essa prática. A observação de Jeanne Safer mostra isso: Muitas das mães que conheço as quais trabalham em tempo integral aplaudiram as mulheres que aparecem neste livro, e não lhes foi difícil demonstrar empatia com seu ponto de vista, ainda que elas mesmas tenham feito uma escolha diferente. Algumas chegaram até a confidenciar que não estavam seguras de que teriam tido filhos se soubessem quais eram as implicações. Entretanto, muitas das mulheres sem filhos com quem conversei depararam com perturbadores fluxos subterrâneos de sentimentos negativos e preconceitos inesperados contra elas. Estranhos contestavam sua feminilidade, sugerindo que eram frias e insensíveis, e a própria família questionava sua moralidade e maturidade (1997, p.156).

Reconhecer que ter filhos pode não ser o suficiente para a realização de uma mulher é proporcional a reconhecer os limites de uma série de “garantias de felicidade” introjetadas por nossa subjetividade em relação ao binômio mulher-mãe. Poderia questionar de onde vêm essas concepções, da natureza da mulher? Ou de uma vontade dominante produzida autoritariamente nos sujeitos? Ratifico o posicionamento de Elisabeth Badinter ao dizer: [...] Os valores de uma sociedade são por vezes tão imperiosos que têm um peso incalculável sobre os nossos desejos [...] A voz do ventre? Mas só hoje começamos a perceber como o desejo de ter um filho é complexo difícil de precisar e de isolar de toda uma rede de fatores psicológicos e sociais (1985, p.16).

Provavelmente esse tipo de análise não perpassa as discussões e planejamento, quando existe, da decisão de ter ou não filhos, muito menos da decisão de ser ou não mãe ou pai.

Opção pelos filhos: o que dizem os homens

Como analisar a opção pela maternidade, ouvindo homens, sem cair na paternidade? Ao longo das entrevistas, ficou claro que havia uma correspondência entre as representações de maternidade com a própria paternidade. Além disso, havia uma interdependência entre os sentidos atribuídos à maternidade e à paternidade, o que se justifica por estarem falando sobre uma experiência que está reconhecidamente localizada na outra pessoa. Assim, para os homens, a questão colocada foi sobre a opção pelos filhos.
Com relação à decisão de ter filhos, os homens demonstraram ter uma relação de dependência com a decisão de a mulher querer ter filhos ou não. Assim, quando falamos na opção pela maternidade em relação às mulheres, apesar de todas as limitações e entraves legítimos, possíveis a estas pela especificidade de gerar e parir, bem como apesar de toda pressão social existente para que exerçam a maternidade, ainda assim, pressupõe-se uma diferenciação com relação ao poder de decisão dos homens. Mulheres podem decidir ter filhos apesar da vontade dos homens de tê-los, enquanto que a recíproca não é verdadeira.
Nesse sentido, a maternidade pode prescindir da paternidade, mas a paternidade não pode prescindir da maternidade.

Considerações Finais
Quando decidi ouvir homens falando acerca de um assunto tão caracteristicamente marcado como “coisa de mulher”, não pensei poder somar tanto ao meu mundo feminino. A maternidade não era mais a soma de concepções de mulheres e homens,  mas a interação dessas. Meu referencial de homens e mulheres sofreu mais uma vez transformações significativas. Compreendi que a maternidade se configura muito mais em “maternidades” do que em uma forma única de vivenciar uma prática social que tem a cara do seu tempo histórico.
Não existe uma concepção universal sobre o que venha a ser maternidade. Implicações políticas, culturais, econômicas contribuem no sentido de produzir sentimentos de amor, de ódio, de culpa, de alegria, de tristeza, que servem em grande parte para nos inscrever em um padrão de normatização responsável por identificar e classificar os comportamentos, “esquadrinhando os corpos” e conformando os sujeitos ao que está instituído como sendo o natural, o certo, o invariável.
Interessante notar que, a educação esteve expressa nas condições estruturais nas quais são representadas as experiências com relação à maternidade. Destaco a concepção naturalizada que perpassou a opção pela maternidade, bem como a compreensão predominante de ser responsabilidade das mulheres o cuidado com os filhos ou filhas, retratando um modelo estereotipado de ser mãe; a importância da forma como o tempo se caracterizou para as mulheres - assumindo peculiaridades sexistas- ainda não totalmentesuperadas pelas mesmas; a decorrência das duplas jornadas de trabalho, no empreendimento profissional das mulheres. As evidências da dimensão educativa podem ser observadas ainda quando, Cristina diz sempre ter idealizado ter filhos; na projeção da maternidade de Márcia quando, desde a sua adolescência, achava que podia ser uma pessoa sozinha “sozinha eu digo, sem marido, não sem filho”; na concepção de Joel acerca a maternidade ser uma experiência mágica “que em geral, toda mulher quer ter”; na perspectiva de filho que Carlos expressou; na maternidade como coisa de menina à que Guta se referiu.
Os olhares que construíram as várias possibilidades de “maternidades” expressas neste trabalho transitaram entre o singular e o coletivo. Houve momentos em que as falas pareciam sintetizar o cruzamento de valores de tantas pessoas; outros, em que a experiência relatada parecia ser singular. Assim, transitei entre Márcia, Cristina, Joel, Carlos e Guta,  entre todas as pessoas que significaram suas vidas.
De alguma forma, a internalização de valores como resultado da maneira como fomos socializadas, educadas, persiste em nós, conduzindo “nossos desejos”. Mas se os vários cruzamentos fizeram da maternidade o que ela está sendo hoje, serão também os vários cruzamentos que irão possibilitar a sua desconstrução. Cruzamentos de olhares que entendam as maternidades para além do bem ou do mal.


Referências Bibliográficas

BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. 8. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.
FLAX, J. Pós Modernismo e as relações de gênero na teoria feminista. In. Pós Modernismo e Política. Rio de Janeiro, Rocco, 1991.
KOFES, S. Categorias analítica empírica: gênero e mulher; disjunções conjunções e
mediações. Cadernos Pagu, vol. 1, 1993.
LOURO, G. L. Gênero, História e Educação: Construção e Desconstrução. Educação e Realidade Vol. 20, nº 2, 1995.
SAFER, J. Além da maternidade: Optando Por Uma Vida Sem Filhos. São Paulo:
Mandarim, 1997.
SCOTT, J. Gênero: Uma categoria útil de análises históricas. Educação e Realidade.
Porto Alegre: n. 16. 1990.
 
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